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Thursday, October 16, 2008

Toponímia histórica (5): Desfasamento entre formação e atestação dos topónimos

Formação e atestação
Define-se época de formação de um topónimo como o período histórico-linguístico (e, se possível, o século) da sua constituição no território de estudo, pelos habitantes ou autoridades administrativas. Época de atestação é a data da fonte documental mais antiga que identifica o topónimo.
Os topónimos da Carta de ocupação romana do Sul da Lusitânia são recolhidos em fontes documentais que vão desde a 1ª Idade do Ferro (fontes pré-romanas, exclusivamente gregas no caso do território de estudo) até à actualidade (repertórios toponímicos contemporâneos), com realce para as fontes coevas da Época Romana propriamente dita.
Pode existir assim um desfasamento, que pode ser enorme (17 séculos!) entre a época de constituição inicial do topónimo na sua língua e contexto originais e a época (e a língua) em que ele surge documentado pela primeira vez. É o caso de inúmeros meso e microtopónimos que só foram identificados após a publicação das cartas militares ou de compilações locais, realizadas apenas no séc. XX.
Quando a atestação que nos chega é de uma fonte de uma época posterior, torna-se imperativa a validação da sua evolução histórico-linguística e a reconstituição da forma original na época de estudo.

Fontes

As fontes classificam-se nos seguintes grupos:

Anteriores à época de estudo: Formas toponímicas pré-romanas, atestadas em autores e legendas anteriores a 200 a.n.e.
Coevas da época de estudo:
* Fontes e legendas greco-romanas do séc. II a.n.e a V n.e.
* Compilações posteriores de fontes Greco-Romanas mais antigas (autores bizantinos): séc. VI a XV
* Fontes peninsulares tardo-antigas e visigóticas: séc. V a VII
Fontes posteriores. As que referem topónimos da sua época mas onde é possível reconhecerem formas fossilizadas ou transformadas de topónimos da época de estudo:
* Fontes intermédias: árabes e latinas medievais
* Fontes modernas e contemporâneas (geralmente posteriores ao séc. XVII, sendo a sua maioria de meados do séc. XX).


FontesPeríodo aproximado
ou convencional
ÉPOCAS
ANTERIORES
A- Pré-romanas Anteriores ao séc. III a.n.e.


ÉPOCA ROMANA

I
B- Greco-Latinas da Época Romana Séc. II a.n.e. a séc. V n.e.
Conquista
200 a 80 a.n.e.
Guerras Civis a Augusto
80 a.n.e. a 14
Alto-Império
14 a 193
Séc. III
194 a 299
Baixo-Império
300 a 476
ANTIGUIDADE

TARDIA

II
C- Greco-Latinas da Antiguidade Tardia séc. V e VIII
Pré-visigóticas

Bizantinas. Incluindo compilações posteriores
séc. VI a XIV
Visigóticas
séc. VII
ÉPOCAS
POSTERIORES
D- Alto-Medievais
D1- Moçárabes
séc. VIII a XII
D2- Árabes coevas do Gharb al-Andalus
séc. VIII a XIII
D3- Árabes. Compilações posteriores
séc. XIII a XVI
D4- Latinas medievais
séc. X a XIII
E-Portuguesas
E1- Medievais
séc. XII a XV
E2- Modernas
séc. XVI a XVIII
E3- Contemporâneas
séc. XIX e XX
Principais fontes toponímicas do Algarve
Medievais, modernas e contemporâneas
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  • Forais e ordenações, séc. XIII a XV
  • Visitações e actas camarárias, séc. XIV e XVII
  • Corografias e histórias religiosas, séc. XVI a XVIII: Frei João de São José, Fernandes Sarrão, Pedro Texeira, Santuário Mariano, André de Resende, Frei Vicente Salgado
  • Memórias Paroquiais (Dicionário do P. Luis Cardozo), 1758 e seguintes
  • Toponímia da cartografia do séc. XVII e XVIII: Karel Allard, Pedro Texeira, Torfino de San Miguel, Carpinetti
  • Silva Lopes (1820-1842): Toponímia do mapa, da corografia e do roteiro
  • Filipe Folque: Toponímia do mapa
  • Gerardo Pery: Toponímia do mapa: folhas impressas e minutas
  • Pinho Leal: Portugal Antigo e Moderno
  • Obras de Leite de Vasconcelos
  • Estanco Louro: Toponímia do Algarve, manuscrito inédito
  • Toponímia da Carta Militar do Continente, 1ª edição
  • Obras de José Pedro Machado e A. Almeida Fernandes
  • Repertório toponímico do Continente, da Carta Militar, 2ª edição
  • Toponímia do cadastro fundiário e das listas de moradas de recenseamento e de distribuição de correio
  • Monografias locais, desde finais do séc. XIX até à actualidade: Ataide de Oliveira, Estanco Louro, Casimiro Anica, etc.
  • Reportórios e levantamentos de património local
Validação histórico-linguística de topónimos atestados tardiamente

Limitações, perigos e abusos: Etimomancia

A aceitação de etimologias antigas para topónimos atestados modernamente, ou em épocas posteriores ao domínio linguístico em causa, é um processo sujeito a muitas críticas, sobretudo quando não existem atestações coevas.
Verifica-se, de facto, uma tendência perniciosa e generalizada para as manipulações linguísticas e para o uso e abuso de homofonias, sem bases documentais nem uma aferição cuidadosa da história de cada topónimo. Esta tara pseudocientífica tem sido designada como Etimomancia.
A Linguística Histórica tem sido amplamente abusada e maltratada, tanto por leigos como por investigadores doutras disciplinas que não possuem formação especializada.
A Etimomancia é sobretudo frequente em estudos etimológicos pré-romanos, em que as manipulações silábicas e as analogias fonéticas se transformam frequentemente numa lotaria de permutações, desprovida de sentido histórico, geográfico e filológico, produzindo sempre os resultados desejados e pré-concebidos pelo "investigador".
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Os etimomantas procedem através de um salto mágico entre a toponímia do presente (de preferência "oral" para evitar a contaminação escrita) e um passado linguístico mítico e original. Ignoram propositadamente todo o processo intermédio multimilenário da linguística histórica, partindo da crença que as miscigenações e mudanças de paradigma linguístico são pouco significativas face à manutenção arquetípica da semelhança entre a língua "original" e o português popular falado da actualidade!
Postulam frequentemente a existência de uma língua "konni" (ou seja a "Escrita do Sudoeste", que permanece desconhecida) que crêem ler fluentemente a partir de línguas semíticas ancestrais decalcadas do Levante asiático do 3º ou 2º milénio a.n.e.!
Ignoram ostensivamente, por crassa ignorância ou má-fé, os aportes do árabe e do latim na toponímia e na língua portuguesa, pois só assim conseguem inventar pseudo-etimologias "semíticas" pré-históricas.
Na realidade ignoram virtualmente tudo sobre a ciência linguística mas acreditam possuir uma chave interpretativa alternativa e superior à "ciência oficial". Esta é uma imagem de marca da charlatanice pseudocientífica.
A etimomancia constitui uma forma especializada de irracionalismo idealista, possível graças à tremenda ignorância filológica gerada pela especialização académica e a uma certa predisposição psicológica para as derivas mágico-cabalisticas.

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Para minimizar estes riscos, sem contudo os poder anular completamente, resolvemos adaptar um conjunto de regras de interpretação toponímica, aplicáveis apenas a topónimos de etimologia latina (ou expressos em língua latina) provenientes da zona moçárabe do território português.
Estas regras só têm sentido quando aplicadas num quadro controlado por especialistas de cada fase linguística. No nosso caso recorremos a dois latinistas (Estudos Clássicos), um arabista medievalista com conhecimentos de língua berbere e uma filóloga especialista em Romance Moçárabe e história da língua portuguesa. Temos tido ainda amáveis opiniões de dois semitologistas. Falta-nos porém a avaliação de especialistas em filologia "indo-europeia" e "ibérica" pré-romana.


Princípios gerais

Na análise etimológica deve respeitar-se a estratigrafia linguística do território de estudo, isto é, o quadro histórico e cronológico da evolução linguística:
- Entre a época de formação do topónimo e a sua primeira atestação, a forma linguística sofre uma sequência de modificações: transformações provocadas pela influência de uma nova língua, evoluções provocadas pelas alterações históricas de uma língua pré-existente.
- A análise de validação deve ser realizada de forma regressiva, desde a fase mais próxima/moderna até à mais distante/antiga. Os topónimos devem cumprir retroactivamente as regras de alteração linguística de cada fase, de modo a evitarem-se anacronismos linguísticos baseados em evoluções etimológicas que ignorem fases linguísticas intermédias.
- Um topónimo não pode ter uma origem anterior à época de introdução da sua raiz linguística, pelo que a sua origem linguística deve fazer-se coincidir com a fase em que o seu étimo tem um significado transparente na língua, sempre que não haja uma hipótese fundamentada de substituição homofónica de um topónimo anterior.
- Não podem ser étimos transparentes (isto é, com um significado corrente) em línguas pós-romanas, nomeadamente em português ou em árabe medieval, apesar de uma eventual etimologia greco-romana. Exceptuam-se os casos em que não há confusão entre o significado original e o sentido corrente, sendo possível identificar ambos. Étimos transportados podem produzir toónimos em qualquer período da sua vigência linguística, podendo assim ser anacrónicos.
Os topónimos actuais, derivados de formas originais latinas, podem ser considerados de dois tipos, cada um com as suas regras próprias de validação:
  1. Transformações posteriores de topónimos já conhecidos na sua forma original ou intermédia mais antiga.
  1. Primeiras atestações, necessitando de um processo de reconstituição.

Regras específicas

Regras de aceitação de topónimos do 1º tipo (com atestações em fontes coevas e posteriores):
  1. Devem ter uma evolução linguística regular ou viável desde a forma original até à atestação árabe ou portuguesa mais antiga.
  2. Pode aceitar-se uma evolução linguística irregular, baseada na substituição homofónica (assimilação linguística: substituição de um termo opaco, pré-existente, por um termo comum e familiar da nova língua que soa de modo idêntico ou muito semelhante aos ouvidos do falante desta), resultante em palavras transparentes em português, árabe ou berbere (isto é serem palavras correntes da língua, na actualidade ou em fases linguísticas anteriores), desde que haja uma confirmação externa da identidade entre o lugar da atestação original e o lugar do étimo moderno.
Regras de aceitação de topónimos do 2º tipo (sem atestações originais):
  1. Devem ter uma etimologia latina, greco-bizantina ou germânico-visigótica, registada noutros topónimos ou em palavras transparentes dessas línguas susceptíveis de uso toponímico.
  2. São aceites sempre que tenham partes específicas ou características de evolução moçárabe regional, revelando a sua existência anterior ao domínio islâmico ou, pelo menos, até ao séc. X. Estes étimos são classificados como Tardo-Antigos e a sua atribuição à época romana pode ser indeterminada, dependendo do seu valor corográfico e contexto extralinguístico.
  3. Devem ter uma retro-evolução linguística regular desde a forma atestada mais antiga até à etimologia sugerida. As derivações irregulares produzem sempre reconstituições duvidosas, que poderão ser incluídas apenas quando não existam alternativas, desde que devidamente subqualificadas.
  4. As variações irregulares podem ser aceites com as restrições acima indicadas, em processos de dupla hibridação linguística com o árabe e com o português, desde que existam paralelos semelhantes com outros étimos, sugerindo a existência de regras complexas ou mal conhecidas.
  5. Podem ser formas intermédias arabizadas, quer pelo árabe quer pelo romance moçárabe
  6. Podem ser traduções quase literais de topónimos latinos ou latinizados em árabe, desde que os topónimos originais estejam atestados em fontes antigas.
  7. Não podem ser formas específicas dos Romances galaico-português e leonês, nem étimos ou antropónimos de origem sueva, o que revelaria a sua importação posterior ao séc. XIII.
  8. As variações ortográficas não devem ser valorizadas. Muitas vezes, as primeiras atestações medievais e modernas, sobretudo as de documentos administrativos locais, apresentam uma grafia pouco digna de confiança, devido à iliteracia generalizada, à não familiaridade com termos locais e à ausência de normalização linguística na toponímia.
  9. As formas latinas aproximadamente clássicas devem ser eliminadas como anacrónicas, excepto quando escondam formas degeneradas mais antigas. De facto, a partir do séc. XVIII tornam-se frequentes as hipercorrecções eruditas, realizadas a partir de formas locais "degeneradas". Em Portugal, estas hipercorrecções abrangem a grande maioria dos hagiónimos, desaparecendo as designações populares, por vezes muito antigas. Só sobrevivem geralmente os hagiónimos fósseis, transformados em topónimos, em dois casos: quando já perderam a associação com a dedicação religiosa primitiva ou quando o culto se tornou residual, em lugares pouco importantes.
    Desde meados do séc. XIX a toponímia é produzida, sobretudo, por notários ou cartógrafos militares e civis com um bom nível de instrução, que tendem sistematicamente a "corrigir" os topónimos duvidosos de acordo com a norma escrita do Português moderno.

4 comments:

  1. Tenho estado a acompanhar estes interessantes apontamentos sobre toponímia. Neles há contudo uma falha: menosprezam o facto de a toponímia ser uma expressão oral das línguas que se foram falando. Assim sendo, as formas escritas são apenas indicativas e nunca instrumentos de trabalho definitivos; deve-se sempre privilegiar a forma oral, por mais diversa que seja, pois foram povos sem escrita, porque não alfabetizados, que transmitiram os topónimos ao longo do tempo.
    Na oralidade está a fonte; a escrita poderá, quando muito, atestar alguma evolução fonética.
    No que respeita à antiguidade dos topónimos esta é quase sempre remota, pois as inovações - provenientes de "invasões" e movimentos migratórios - são sempre limitadas e, frequentemente, dizem apenas respeito à adaptação do termo local à língua dos colonizadores. Além disso o fenómeno da colonização é também relativo, pois ninguém no seu perfeito juízo pode ter a ideia de que os povos autóctones eram expulsos ou a sua língua proibida.

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  2. Caro Ruy Ventura.
    Agradeço a sua exposição clara e circunstanciada, que me permite afirmar que estou em desacordo com quase tudo o que diz.
    Envio-lhe uma resposta mais longa directamente para o seu correio electrónico.
    Obrigado pelo comentário
    Luis Fraga

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  3. Parabéns pelo excelente blog sobre toponímia bem como pela carta etnográfica dos povos pré-romanos da Peninsula Iberica (200 a.C) disponibilizada emm www.arqueotavira.com. Constituem uma das fontes mais confiáveis para qualquer estudo relacionado com disciplinas históricas. Onde refere: "Obras de João Pedro Machado e A. Almeida Fernandes" creio que o nome "João" pretenderia referir-se a "José"? Ao dicionarista e arabista José Pedro Machado?
    Obrigado.

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  4. Caro Cirilo. Obrigado pele sua gentil opinião e sobretudo pela correcção.
    Foi um lapso meu, que já corrigi.

    Cumprimentos
    Luis Fraga

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