It takes a great deal of History to produce a little History

Wednesday, October 22, 2008

Excurso sobre história religiosa do Algarve pós-medieval

No Algarve, após a conquista portuguesa, o principal esforço religioso das autoridades centrou-se na cristianização dos centros urbanos, pela rededicação das mesquitas a Santa Maria e Santiago (com excepção do caso de Loulé) e fundação de conventos.
A partir do séc. XV iniciam-se novas construções religiosas com dedicações medievais, reflectindo a colonização de populações portuguesas nos principais povoados secundários e a expansão urbana.

Desconhece-se o quadro das rededicações cristãs provocadas pela colonização portuguesa no âmbito rural assim como das importações de crenças religiosas e rituais e tradições da esfera sobrenatural.

Em meios rurais não senhoriais (a Igreja da Senhora de Guadalupe não pertence a este grupo) não há praticamente notícias de constituição de igrejas novas, com novos padroeiros, antes do séc. XV.

Após a expulsão dos mouriscos e judeus, o controlo e a repressão pela hierarquia católica pós-Trentina foram particularmente rigorosas. A perseguição atingiu os cultos rurais de raiz moçárabe, dando origem a numerosas deslocações de lugares de culto, obliteração de sítios ancestrais da sacralidade popular e rededicações mais de acordo com o espírito da ortodoxia.

A partir do séc. XVI verifica-se uma evidente desfuncionalização dos cultos nas áreas agro-pecuária, médica e reprodutiva, e a sua substituição por novas entidades enquadráveis no novo discurso ideológico e moralista do clero, fortemente centrado no controlo da vida religiosa, civil e privada dos habitantes rurais.
Este processo acompanhou-se de uma tentativa, imperfeitamente conseguida, de expurgar o calendário cíclico dos seus vestígios pré-cristãos, através do seu ajustamento ao calendário litúrgico.

É o caso, sobretudo dos cultos marianos (Rosário, Conceição, Graça, Piedade, Luz) e hagiológicos directamente ligados ao ciclo cristológico (donde a provável manutenção dos templos e lugares já previamente dedicados ao culto dos apóstolos, de origem muito antiga) e à vida espiritual abstracta.

Pelo contrário, as populações continuavam a traduzir as suas preocupações específicas da esfera material através da religião, articulando um rol de datas de calendário e de devoções especializadas ancestrais com uma oferta de lugares de culto, na sua grande parte muito antigos.
Aprofundou-se uma clara distinção entre as igrejas de culto quotidiano, muitos deles bastante recentes, e os santuários de devoção especializada, geralmente muito mais antigos.

O mercado das "virtudes" procuradas pela devoção popular fica assim, a partir do séc. XVI, sob o apertado controlo das autoridades eclesiásticas.

O enorme crescimento da oferta religiosa é um dos sinais de marca do Antigo Regime: paróquias, associações religiosas e, sobretudo, as ordens religiosas fomentaram a criação de novos santuários e concorriam entre si através dos milagres e virtudes de cada um.
Favoreciam-se os santuários multivalentes, sem especialização funcional, não só por razões doutrinais mas também para diversificar as devoções procuradas, embora nunca desapareçam totalmente os catálogos de "especialidades" próprias de cada santuário.

As consequências gerais da hegemonia católica trentina são bem conhecidas: ascensão da irracionalidade religiosa na condução de todas as esferas da vida; aumento do peso demográfico e social da população ocupada na esfera religiosa; e o correspondente crescimento do excedente social consumido em devoções e convertido em rendimentos e bens eclesiásticos, onde se destacam as novas construções, prebendas, recheios e atavios.

Este processo conduziu à exacerbação da concorrência entre santuários, gerando uma crise apreciável a partir do séc. XVIII.
Desde então verifica-se que as modas religiosas passam a reger o sucesso ou falência de numerosos santuários, tendo muitos deles entrados na obscuridade ou desaparecido, abandonados ou destruídos sem reconstrução.
Cito apenas os casos da Fonte Santa da Luz a partir de finais do séc. XIV, da Luz de Tavira (que substituiu o anterior) a partir do séc. XVII e da Senhora da Ajuda de Alvor partir do séc. XVIII, (destruído pelo maremoto de 1755) como exemplos importantes do primeiro e do último caso.

Na Região, o bispo do Algarve converte-se na principal autoridade não militar da província, com amplos poderes civis.
A partir do séc. XVII torna-se notória a intromissão do poder religioso na esfera civil e pessoal, manifestada através de uma abundante legislação coerciva, que se mantém até ao final do Antigo Regime.

Os cultos hagiológicos e marianos antigos, de cariz naturalista e ligados às funções produtiva, médica, sexual e fertilizadora são ou extintos ou profundamente transformados, tendendo a tornar-se santuários generalistas, associados a comunidades territoriais ou a cultos marginais anuais onde sobrevive a funcionalidade original (caso das Senhoras da Ajuda, Conceição, etc., em que a ortodoxia do ritual continua a associar-se à ablução com águas profiláticas do foro feminino).

É desde o séc. XIV e XV que se constituem todos os santuários importantes que sobreviveram até à actualidade.
Os casos da Senhora da Luz, da Senhora das Ajuda e de Santa Catarina (Tavira) e da Senhora da Piedade (Loulé) são exemplares neste sentido. O mesmo se passa com o culto de são Brás, cujas raízes primitivas moçárabes são totalmente obliteradas pela repressão explícita das "bênçãos do gado", transformando-se em São Brás de Alportel, numa festa pascal com fortes conotações cristãs-novas a partir do séc. XVII ou XVIII.

Os rituais cíclicos pré-cristãos que sobreviveram até à actualidade já sem carácter religioso, mantêm-se em locais que nunca foram apropriados pelo clero, por a sua cristianização anterior ser ou muito superficial (como é o caso do Cerro de São Miguel) ou inexistente , como a Fonte da Benémola, Pego do Inferno e outros semelhantes, cuja tradição entretanto se perdeu, estando associados a datas nunca totalmente integradas no cânone católico (Dia de Maio, São João, São Miguel de Setembro).
Os demais rituais ou se extinguiram ou foram totalmente integrados desde o início no calendário litúrgico católico (Dia dos Mortos, Festas marianas de Agosto)

Os rituais próprios de lugares que sobreviveram transformaram-se em superstições e lendas folclóricas locais ou no seu reflexo toponímico, por vezes coadjuvado por lendas cristãs e vestígios arqueológicos quase sempre pouco específicos.

Deve avaliar-se com cuidado a origem geográfica e cultural das crenças e rituais de índole etnográfico, nomeadamente as associadas a festividades cíclicas.
Se nos centros urbanos é norma a imposição de modelos importados correntes noutros pontos do país (Janeiras, Maio, São João) já nos meios rurais as tradições podem ser autóctones, sobretudo quando associadas a lugares de topografia sagrada, ou importadas por comunidades migrantes organizadas quando se tratam de festas cíclicas especificas (caso hipotético de colonização alentejana recente de origem baixo-alentejana no Algarve Oriental, posterior às Guerras Civis, com a sua forma peculiar da celebração do dia de Maio).

Bibliografia principal

A incluir brevemente...

Thursday, October 16, 2008

Toponímia histórica (5): Desfasamento entre formação e atestação dos topónimos

Formação e atestação
Define-se época de formação de um topónimo como o período histórico-linguístico (e, se possível, o século) da sua constituição no território de estudo, pelos habitantes ou autoridades administrativas. Época de atestação é a data da fonte documental mais antiga que identifica o topónimo.
Os topónimos da Carta de ocupação romana do Sul da Lusitânia são recolhidos em fontes documentais que vão desde a 1ª Idade do Ferro (fontes pré-romanas, exclusivamente gregas no caso do território de estudo) até à actualidade (repertórios toponímicos contemporâneos), com realce para as fontes coevas da Época Romana propriamente dita.
Pode existir assim um desfasamento, que pode ser enorme (17 séculos!) entre a época de constituição inicial do topónimo na sua língua e contexto originais e a época (e a língua) em que ele surge documentado pela primeira vez. É o caso de inúmeros meso e microtopónimos que só foram identificados após a publicação das cartas militares ou de compilações locais, realizadas apenas no séc. XX.
Quando a atestação que nos chega é de uma fonte de uma época posterior, torna-se imperativa a validação da sua evolução histórico-linguística e a reconstituição da forma original na época de estudo.

Fontes

As fontes classificam-se nos seguintes grupos:

Anteriores à época de estudo: Formas toponímicas pré-romanas, atestadas em autores e legendas anteriores a 200 a.n.e.
Coevas da época de estudo:
* Fontes e legendas greco-romanas do séc. II a.n.e a V n.e.
* Compilações posteriores de fontes Greco-Romanas mais antigas (autores bizantinos): séc. VI a XV
* Fontes peninsulares tardo-antigas e visigóticas: séc. V a VII
Fontes posteriores. As que referem topónimos da sua época mas onde é possível reconhecerem formas fossilizadas ou transformadas de topónimos da época de estudo:
* Fontes intermédias: árabes e latinas medievais
* Fontes modernas e contemporâneas (geralmente posteriores ao séc. XVII, sendo a sua maioria de meados do séc. XX).


FontesPeríodo aproximado
ou convencional
ÉPOCAS
ANTERIORES
A- Pré-romanas Anteriores ao séc. III a.n.e.


ÉPOCA ROMANA

I
B- Greco-Latinas da Época Romana Séc. II a.n.e. a séc. V n.e.
Conquista
200 a 80 a.n.e.
Guerras Civis a Augusto
80 a.n.e. a 14
Alto-Império
14 a 193
Séc. III
194 a 299
Baixo-Império
300 a 476
ANTIGUIDADE

TARDIA

II
C- Greco-Latinas da Antiguidade Tardia séc. V e VIII
Pré-visigóticas

Bizantinas. Incluindo compilações posteriores
séc. VI a XIV
Visigóticas
séc. VII
ÉPOCAS
POSTERIORES
D- Alto-Medievais
D1- Moçárabes
séc. VIII a XII
D2- Árabes coevas do Gharb al-Andalus
séc. VIII a XIII
D3- Árabes. Compilações posteriores
séc. XIII a XVI
D4- Latinas medievais
séc. X a XIII
E-Portuguesas
E1- Medievais
séc. XII a XV
E2- Modernas
séc. XVI a XVIII
E3- Contemporâneas
séc. XIX e XX
Principais fontes toponímicas do Algarve
Medievais, modernas e contemporâneas
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  • Forais e ordenações, séc. XIII a XV
  • Visitações e actas camarárias, séc. XIV e XVII
  • Corografias e histórias religiosas, séc. XVI a XVIII: Frei João de São José, Fernandes Sarrão, Pedro Texeira, Santuário Mariano, André de Resende, Frei Vicente Salgado
  • Memórias Paroquiais (Dicionário do P. Luis Cardozo), 1758 e seguintes
  • Toponímia da cartografia do séc. XVII e XVIII: Karel Allard, Pedro Texeira, Torfino de San Miguel, Carpinetti
  • Silva Lopes (1820-1842): Toponímia do mapa, da corografia e do roteiro
  • Filipe Folque: Toponímia do mapa
  • Gerardo Pery: Toponímia do mapa: folhas impressas e minutas
  • Pinho Leal: Portugal Antigo e Moderno
  • Obras de Leite de Vasconcelos
  • Estanco Louro: Toponímia do Algarve, manuscrito inédito
  • Toponímia da Carta Militar do Continente, 1ª edição
  • Obras de José Pedro Machado e A. Almeida Fernandes
  • Repertório toponímico do Continente, da Carta Militar, 2ª edição
  • Toponímia do cadastro fundiário e das listas de moradas de recenseamento e de distribuição de correio
  • Monografias locais, desde finais do séc. XIX até à actualidade: Ataide de Oliveira, Estanco Louro, Casimiro Anica, etc.
  • Reportórios e levantamentos de património local
Validação histórico-linguística de topónimos atestados tardiamente

Limitações, perigos e abusos: Etimomancia

A aceitação de etimologias antigas para topónimos atestados modernamente, ou em épocas posteriores ao domínio linguístico em causa, é um processo sujeito a muitas críticas, sobretudo quando não existem atestações coevas.
Verifica-se, de facto, uma tendência perniciosa e generalizada para as manipulações linguísticas e para o uso e abuso de homofonias, sem bases documentais nem uma aferição cuidadosa da história de cada topónimo. Esta tara pseudocientífica tem sido designada como Etimomancia.
A Linguística Histórica tem sido amplamente abusada e maltratada, tanto por leigos como por investigadores doutras disciplinas que não possuem formação especializada.
A Etimomancia é sobretudo frequente em estudos etimológicos pré-romanos, em que as manipulações silábicas e as analogias fonéticas se transformam frequentemente numa lotaria de permutações, desprovida de sentido histórico, geográfico e filológico, produzindo sempre os resultados desejados e pré-concebidos pelo "investigador".
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Os etimomantas procedem através de um salto mágico entre a toponímia do presente (de preferência "oral" para evitar a contaminação escrita) e um passado linguístico mítico e original. Ignoram propositadamente todo o processo intermédio multimilenário da linguística histórica, partindo da crença que as miscigenações e mudanças de paradigma linguístico são pouco significativas face à manutenção arquetípica da semelhança entre a língua "original" e o português popular falado da actualidade!
Postulam frequentemente a existência de uma língua "konni" (ou seja a "Escrita do Sudoeste", que permanece desconhecida) que crêem ler fluentemente a partir de línguas semíticas ancestrais decalcadas do Levante asiático do 3º ou 2º milénio a.n.e.!
Ignoram ostensivamente, por crassa ignorância ou má-fé, os aportes do árabe e do latim na toponímia e na língua portuguesa, pois só assim conseguem inventar pseudo-etimologias "semíticas" pré-históricas.
Na realidade ignoram virtualmente tudo sobre a ciência linguística mas acreditam possuir uma chave interpretativa alternativa e superior à "ciência oficial". Esta é uma imagem de marca da charlatanice pseudocientífica.
A etimomancia constitui uma forma especializada de irracionalismo idealista, possível graças à tremenda ignorância filológica gerada pela especialização académica e a uma certa predisposição psicológica para as derivas mágico-cabalisticas.

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Para minimizar estes riscos, sem contudo os poder anular completamente, resolvemos adaptar um conjunto de regras de interpretação toponímica, aplicáveis apenas a topónimos de etimologia latina (ou expressos em língua latina) provenientes da zona moçárabe do território português.
Estas regras só têm sentido quando aplicadas num quadro controlado por especialistas de cada fase linguística. No nosso caso recorremos a dois latinistas (Estudos Clássicos), um arabista medievalista com conhecimentos de língua berbere e uma filóloga especialista em Romance Moçárabe e história da língua portuguesa. Temos tido ainda amáveis opiniões de dois semitologistas. Falta-nos porém a avaliação de especialistas em filologia "indo-europeia" e "ibérica" pré-romana.


Princípios gerais

Na análise etimológica deve respeitar-se a estratigrafia linguística do território de estudo, isto é, o quadro histórico e cronológico da evolução linguística:
- Entre a época de formação do topónimo e a sua primeira atestação, a forma linguística sofre uma sequência de modificações: transformações provocadas pela influência de uma nova língua, evoluções provocadas pelas alterações históricas de uma língua pré-existente.
- A análise de validação deve ser realizada de forma regressiva, desde a fase mais próxima/moderna até à mais distante/antiga. Os topónimos devem cumprir retroactivamente as regras de alteração linguística de cada fase, de modo a evitarem-se anacronismos linguísticos baseados em evoluções etimológicas que ignorem fases linguísticas intermédias.
- Um topónimo não pode ter uma origem anterior à época de introdução da sua raiz linguística, pelo que a sua origem linguística deve fazer-se coincidir com a fase em que o seu étimo tem um significado transparente na língua, sempre que não haja uma hipótese fundamentada de substituição homofónica de um topónimo anterior.
- Não podem ser étimos transparentes (isto é, com um significado corrente) em línguas pós-romanas, nomeadamente em português ou em árabe medieval, apesar de uma eventual etimologia greco-romana. Exceptuam-se os casos em que não há confusão entre o significado original e o sentido corrente, sendo possível identificar ambos. Étimos transportados podem produzir toónimos em qualquer período da sua vigência linguística, podendo assim ser anacrónicos.
Os topónimos actuais, derivados de formas originais latinas, podem ser considerados de dois tipos, cada um com as suas regras próprias de validação:
  1. Transformações posteriores de topónimos já conhecidos na sua forma original ou intermédia mais antiga.
  1. Primeiras atestações, necessitando de um processo de reconstituição.

Regras específicas

Regras de aceitação de topónimos do 1º tipo (com atestações em fontes coevas e posteriores):
  1. Devem ter uma evolução linguística regular ou viável desde a forma original até à atestação árabe ou portuguesa mais antiga.
  2. Pode aceitar-se uma evolução linguística irregular, baseada na substituição homofónica (assimilação linguística: substituição de um termo opaco, pré-existente, por um termo comum e familiar da nova língua que soa de modo idêntico ou muito semelhante aos ouvidos do falante desta), resultante em palavras transparentes em português, árabe ou berbere (isto é serem palavras correntes da língua, na actualidade ou em fases linguísticas anteriores), desde que haja uma confirmação externa da identidade entre o lugar da atestação original e o lugar do étimo moderno.
Regras de aceitação de topónimos do 2º tipo (sem atestações originais):
  1. Devem ter uma etimologia latina, greco-bizantina ou germânico-visigótica, registada noutros topónimos ou em palavras transparentes dessas línguas susceptíveis de uso toponímico.
  2. São aceites sempre que tenham partes específicas ou características de evolução moçárabe regional, revelando a sua existência anterior ao domínio islâmico ou, pelo menos, até ao séc. X. Estes étimos são classificados como Tardo-Antigos e a sua atribuição à época romana pode ser indeterminada, dependendo do seu valor corográfico e contexto extralinguístico.
  3. Devem ter uma retro-evolução linguística regular desde a forma atestada mais antiga até à etimologia sugerida. As derivações irregulares produzem sempre reconstituições duvidosas, que poderão ser incluídas apenas quando não existam alternativas, desde que devidamente subqualificadas.
  4. As variações irregulares podem ser aceites com as restrições acima indicadas, em processos de dupla hibridação linguística com o árabe e com o português, desde que existam paralelos semelhantes com outros étimos, sugerindo a existência de regras complexas ou mal conhecidas.
  5. Podem ser formas intermédias arabizadas, quer pelo árabe quer pelo romance moçárabe
  6. Podem ser traduções quase literais de topónimos latinos ou latinizados em árabe, desde que os topónimos originais estejam atestados em fontes antigas.
  7. Não podem ser formas específicas dos Romances galaico-português e leonês, nem étimos ou antropónimos de origem sueva, o que revelaria a sua importação posterior ao séc. XIII.
  8. As variações ortográficas não devem ser valorizadas. Muitas vezes, as primeiras atestações medievais e modernas, sobretudo as de documentos administrativos locais, apresentam uma grafia pouco digna de confiança, devido à iliteracia generalizada, à não familiaridade com termos locais e à ausência de normalização linguística na toponímia.
  9. As formas latinas aproximadamente clássicas devem ser eliminadas como anacrónicas, excepto quando escondam formas degeneradas mais antigas. De facto, a partir do séc. XVIII tornam-se frequentes as hipercorrecções eruditas, realizadas a partir de formas locais "degeneradas". Em Portugal, estas hipercorrecções abrangem a grande maioria dos hagiónimos, desaparecendo as designações populares, por vezes muito antigas. Só sobrevivem geralmente os hagiónimos fósseis, transformados em topónimos, em dois casos: quando já perderam a associação com a dedicação religiosa primitiva ou quando o culto se tornou residual, em lugares pouco importantes.
    Desde meados do séc. XIX a toponímia é produzida, sobretudo, por notários ou cartógrafos militares e civis com um bom nível de instrução, que tendem sistematicamente a "corrigir" os topónimos duvidosos de acordo com a norma escrita do Português moderno.

Toponímia histórica (4): Modelo sistémico de evolução linguística dos topónimos

Modelo aplicável ao Sul do território actualmente português

A matéria deste post corresponde a um síntese em curso, tornada possível graças aos conhecimentos, investigação original e colaboração de Maria Alice Fernandes, especialista em história da língua portuguesa e em Romance tardo-antigo e medieval. Deve porém frisar-se que todas as eventuais incorrecções e ilações menos fundamentadas são da exclusiva responsabilidade do autor do blog.

A toponímia estabelece uma relação linguística entre um dado grupo humano e o território que ocupa.

Os topónimos formam-se por um processo primitivo de toponimização original do território ou por substituição toponímica.

Os topónimos sofrem uma evolução histórico-linguística específica, em períodos cronológicos sucessivos. Cada fase dessa evolução corresponde a uma transformação de uma forma inicial do topónimo numa forma final.

O diagrama seguinte ilustra as fases do processo histórico em que a mudança geopolítica da língua dominante condiciona a toponímia pré-existente, através dos seguintes fenómenos:

  • Desaparecimento, sem substituição
  • Adopção, com transformação linguística. O conteúdo semântico original pode então:
    • Manter-se
    • Modificar-se
    • Extinguir-se (o topónimo torna-se opaco na nova língua)
  • Substituição
    • Por tradução (substituição erudita, com tradução da semântica original)
    • Por analogia fonética (homofonia: substituição popular, com perda do significado original)

A evolução linguística própria da língua dominante age sobre todos os topónimos, independentemente da sua pré-existência e origem linguística.

As transformações decorrentes podem classificar-se em:

  • Alterações fonéticas e morfológicas
    • Simplificação
    • Inovação
    • Afixação
    • Ajustamento à norma da língua dominante, eliminando localismos originais e formas conservadoras
    • Hipercorrecção toponímica erudita. Forma particular de ajustamento à norma, que se aplica a antropotopónimos, hagiónimos e topónimos historicamente atestados ou reconstituídos segundo a cultura erudita dos falantes da língua dominante. Pode consistir na substituição de um topónimo actual por um topónimo desaparecido numa fase histórica anterior (recuperação toponímica anacrónica, real ou fictícia), numa forma adaptada à norma linguística actual
  • Alterações sintácticas
    • Alteração das regras de composição
  • Hibridação
    • Hibridação lexical, com étimos adoptados de outras línguas. Nestes casos, os étimos adoptados opacos tornam-se designações toponímicas, perdendo o seu valor coronímico original.
    • A formação de híbridos pode dever-se, para além da hibridação lexical, a alterações fonéticas e morfológicas de palavras da língua dominante e a novas regras de composição sintáctica, por falantes de línguas secundárias, nomeadamente falantes de línguas anteriormente existentes ou migrantes de zonas linguisticamente diferenciadas.

Clique aqui para ver uma versão ampliada do diagrama em formato pdf

Wednesday, October 15, 2008

Toponímia histórica (3): Estratos histórico-linguísticos

O diagrama e a tabela sintetizam, de forma muito sucinta, as principais linhas de evolução linguística e cronológica dos topónimos meridionais, desde a 1ª Idade do Ferro até à actualidade. Reporta-se ao território actual do Algarve e regiões vizinhas.

O diagrama representa o percurso transformativo e as influências linguísticas sofridas por topónimos sobreviventes desde a época da sua criação até à sua atestação escrita, que pode ocorrer em períodos tardios e em línguas distintas da original.

clique a imagem para ver uma versão pdf vectorial

Época histórico-

Linguística

Línguas

Registo nas fontes

Fenómenos linguísticos mais importantes

Fontes coevas

Pré-romana

Idade

Bronze

Fenício

Topónimos

-

Tartéssico

Idade

Ferro

Turdetano

Topónimos e antropónimos

Celta

Púnico

Grego

Helenização ou tradução de étimos não gregos

Gregas

Romana

Latim

Nova toponimização do território

Latinização de étimos não latinos

Greco-Romanas

Grego

Helenização e tradução do latim ou de étimos indígenas

Latim popular

Degeneração linguística do latim clássico

Epigrafia latina

Tardo-Antiga

Romance

Latim popular após o fim do domínio romano

-

Visigodo

Limitada a topónimos, sobretudo antropotopónimos

Latim visigótico

Limitado a topónimos. Ausência de fontes regionais

Tardias

Outras línguas dos povos das invasões

Duvidosos. Antropotopónimos

-

Grego bizantino


Bizantinas

Islâmica

Moçárabe

Hagiotopónimos cristãos, revelando lugares de culto visigóticos (séc. VIII-X)

Nova toponimização do território

Línguas germânicas pré-islâmicas e antropónimos germânicos em formas híbridas romances e moçárabes

Formas moçárabes e híbridos moçárabes arabizados de étimos pré-islâmicos

Arabizações e traduções árabes de étimos pré-islâmicos

Árabes

Moçárabes

Árabe

Berbere

Línguas de grupos étnicos orientais

Latim medieval anterior ou contemporâneo da conquista

Latinização dos anteriores

Portuguesas

Europeias

Portuguesa

Latim medieval

Nova toponimização do território

Integração do Moçárabe no Português

Evolução e normalização da língua

Portuguesas

Português medieval

Português intermédio

Português moderno

Topónimos pré-romanos

Pré-existentes no início da conquista romana (cerca de 200 a.C.), nomeadamente das línguas indígenas, das línguas de colonização e das corografias gregas pré-romanas.

Os topónimos de fontes pré-romanas, em escasso número mas de grande importância corográfica, foram na sua maioria posteriormente traduzidos do grego em latim ou latinizados a partir dos nomes indígenas originais.

Identificam-se pela sue ocorrência em fontes anteriores à conquista romana ou, sobretudo, por uma atestação directa nas fontes greco-romanas posteriores à ocupação, associados a etimologias não latinas.

Certos casos podem corresponder a uma tradução latina de topónimos anteriores ou a uma adaptação latina por convergência fonética, tendo desaparecido as formas originais.

Podem surgir atestações tardias de formas evolutivas, que confirmam atestações anteriores.

Outros casos ainda, mais problemáticos, correspondem a topónimos sobreviventes sem atestação directas nas fontes greco-romanas, não pertencendo a estratos linguísticos posteriores, e cuja reconstituição etimológica produz étimos não latinos atestados em fontes greco-romanas noutras regiões, acompanhados de vestígios arqueológicos compatíveis com essa etimologia.

A etimologia e a própria pertença linguística dos topónimos pré-romanos é um assunto que está longe de um consenso académico. De um modo geral considera-se que estes topónimos provêm de cinco grupos linguísticos, falados no sudoeste peninsular antes da conquista romana:

Línguas do Bronze final
  1. Fenício. Linguagem de colonização oriental, não autóctone. Manifesta-se na toponímia antiga, em assentamentos e lugares religiosos de fundação fenícia nos séculos X a VI a.C.
  2. Tartéssico. Linguagem hoje quase desconhecida, falada no Sudoeste peninsular entre o Sado e o Guadalquivir, nos séculos X a VI a.C.
Línguas da Idade do Ferro
  1. Turdetano Ocidental. Linguagem mal conhecida, falada no Sudoeste peninsular nos sécs. V a II a.C. na actual Andaluzia e em parte do Algarve, deixando marcas posteriores na toponímia semi-romanizada.
  2. Celta. Grupo de linguagens provavelmente não homogéneas, falada entre o Tejo e o Guadiana e em diversas áreas da actual Andaluzia, nos sécs. VI a I a.C., deixando marcas posteriores na onomástica pessoal e toponímia.
  3. Púnico (cartaginês). Linguagem de colonização cartaginesa, de origem fenícia, temperada com influências norte-africanas nas zonas de ocupação agrária (fora da nossa zona de estudo). A sua difusão corresponde ao séc. III a. C. Deixou marcas posteriores na toponímia e, sobretudo, na onomástica pessoal de raiz mauritano-púnica

Topónimos da Época Romana

Formados durante o domínio romano (de 200 a.C. até 411 d.C.), na sua imensa maioria latinos, talvez uma ínfima minoria grega e ainda os produtos da latinização de topónimos dos estratos linguísticos mais antigos.

A cronologia da sua formação dentro da época romana é relativa e muito mal conhecida, ajustada à datação das fontes onde o termo surge pela primeira vez. Certas formas de assentamento são reveladoras dos grandes períodos da sua constituição.

Topónimos da Antiguidade Tardia

Topónimos tardios ou Tardo-Antigos são os formados após a queda do poder romano no Sul da Lusitânia (410) e antes da conquista islâmica. (714) Incluem também topónimos anteriores, sujeitos geralmente a uma evolução linguística regional, que foram recolhidos em fontes Tardias.

Este período, muito mal conhecido no Sul de Portugal, corresponde a quatro fases políticas:

  • Grandes invasões. Fase de destruições e abandonos, provocados essencialmente, segundo se pensa, por razias vândalas e suevas. Esta fase conjuga-se com a segunda e refere-se sobretudo à época de 410-c. 460
  • Manutenção geral do poder local tardo-romano, com permanência da ocupação (ou reocupação) de uma parte das villae tardias: c. 460-c. 552
  • Domínio bizantino e zona de guerra bizantino-visigótica, abrangendo a zona entre Beja e a costa algarvia. c. 552- 630
  • Domínio visigótico: 630-711

Pensa-se que a formação de novos topónimos não terá sido significativa no período 1

Os topónimos algarvios de origem bizantina, correspondentes à fase 3, são raros e apenas hipotéticos. O seu estudo não é abordado neste trabalho.

A fase 4 terá sido a mais importante quanto à formação de novos topónimos, nomeadamente os de raiz germânica.

Pensa-se que os topónimos de villae de possessores em -ana e -im sejam romanos e tardo-romanos, embora haja a possibilidade de alguns deles serem de formação mais tardia. Este tema é assunto de um estudo em curso, de Maria Alice Fernandes.

As fontes literárias utilizadas, contemporâneas deste 4° período, são apenas duas: a "divisio Wambae" e a "Cosmographia Ravennae", pouco produtivas na área de estudo (6 topónimos).

  • Os topónimos da Antiguidade Tardia, até à conquista islâmica, nomeadamente em latim popular tardio (romance meridional, designado como moçárabe após 714), dos grupos linguísticos não latinos posteriores ao fim do domínio romano (grego bizantino, visigótico e outras línguas da época das invasões) e das fontes escritas greco-latinas tardias.

    O moçárabe continua a constituir novos topónimos (já sob domínio islâmico) até pelo menos ao séc. X, pelo que é geralmente impossível distinguir os constituídos antes e após 714. Excluindo formas linguísticas e corográficas próprias da Antiguidade Tardia, é quase sempre impossível determinar se os topónimos fósseis de etimologia latina deste estrato histórico-linguístico são formações coevas ou evoluções linguísticas de topónimos mais antigos, da época romana propriamente dita. Resolveu-se, assim inclui-los a todos, com a devida ressalva.


Um pequeno grupo de topónimos ocorre ainda em latim, em fontes escritas tardias, isto é, produzidas após a queda do império romano do Ocidente e antes da invasão árabe (de 411 a 711 d. C.). Correspondem a formas de evolução linguística do latim tardio e identificam topónimos já conhecidos de fontes anteriores e outros originais, ignorando-se neste caso se correspondem a nomes da época imperial ou a novos lugares surgidos nos sécs. V a VII.

O maior número de topónimos da época romana e tardo-antiga surge apenas em fontes de épocas pós-romanas, nomeadamente árabes, latinas-medievais pré-portuguesas e portuguesas, em fase antigas e modernas da evolução da língua.

Esses topónimos, latinos ou latinizados, recolhidos em fontes pós-latinas, sofreram uma transformação linguística mais ou menos forte, dependente do estrato linguístico e da fase histórica em que foram recolhidos.

Topónimos Tardios e Moçárabes

É impossível, no estado actual do conhecimento, distinguir entre formas toponímicas tardias de etimologia latina das formadas nos primeiros séculos do domínio islâmico, podendo apenas estas últimas ser designadas por moçárabes.

Os topónimos atestados com formas arabizadas e híbridas de etimologia latina ou germânica são obviamente moçárabes, mas desconhece-se se se tratam de formações toponímicas anteriores que sofreram modificações linguísticas ou de novas formações posteriores ao início do domínio islâmico.

O mesmo se passa com as formas latinas moçárabes não arabizadas, que, mais provavelmente terão uma origem tardo-romana, sendo por nós consideradas como tal.

Toponimização cristã

A formação histórica de hagiotopónimos territoriais paleocristãos é um processo bastante tardio, que se inicia apenas no séc. VII (ver Stacio Sacra no meu estudo Marim Romano).

Até aí a hagionímica limitava-se à identificação dos lugares de culto. Este processo de toponimização religiosa ter-se-á intensivado e difundido durante os primeiros séculos do domínio islâmico (séc. VIII a X), constituindo em meu entender uma forma específica de apropriação simbólica do território e de identificação de comunidades cristãs moçárabes, em torno dos seus lugares de culto.

As fontes árabes e a reconstituição linguística da toponímia árabe permitem identificar alguns desses hagiotopónimos no Algarve islâmico: Santa Maria, São Brás, São Julião, Santa Inês. Outros são atestados apenas após a conquista portuguesa, como São Clemente, São Faustino, Santa Luzia, Sant'Ana, Sant'Antão, São Mamede, São Pedro, São Marcos, São Lourenço e Cristo/Salvador, todas elas entidades do culto moçárabe e, portanto, com provável ou possível toponimização anterior.

Muitos outros casos são duvidosos, pois poderão ter-se-ão originado já após a conquista portuguesa. Destaco apenas os casos mais evidentes de São Vicente, São Sebastião, Sant'Iago, São Lázaro, São Roque, Santo Estêvão e dos epítetos marianos, devido ao seu recrudescimento específico como fenómeno da colonização portuguesa ou de modas religiosas posteriores, não podendo ser aceites as suas atestações posteriores como prova de antiguidade.

Topónimos arabizados

Alguns topónimos romanos importantes são referidos em fontes árabes ou na tradução latina medieval destas.

Uns são resultantes da evolução de topónimos já atestados em fontes clássicas.

Outros são, porém, primeiras atestações, identificáveis pela sua não etimologia árabe ou berbere, pela sua etimologia latina, ou, em certos casos, por um provável paralelismo etimológico de raiz pré-romana.

Topónimos portugueses

São os topónimos remanescentes, que surgem sob formas latinas fósseis ou transformadas pela evolução da língua.

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