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Wednesday, November 16, 2005

QUARTEIRA



O mito de Carteia
A descoberta de moedas com a legenda Carteia em Quarteira, associada à semelhança dos topónimos, gerou uma falsa etimologia, apoiada por deficientes leituras e más interpretações dos autores latinos.
Essa identificação de Carteia com Quarteira foi desenvolvida e divulgada por Frei Vicente Salgado com aliciante fantasia (Memórias Eclesiásticas do Reino do Algarve, Lisboa 1786, pp. 48-57) e, apesar das relativas reticências deste autor, tornou-se dominante com a vulgata romântica de finais do séc. XIX.

As moedas de Carteia
Às duas moedas descobertas em Quarteira, bem descritas por V. Salgado, junta-se uma terceira, identificada por Afonso do Paço e José Ferrajota, na sua comunicação "Subsídios para uma carta arqueológica do concelho de Loulé", de 1964. Estes autores referem igualmente uma moeda idêntica a uma das descritas por Salgado, podendo ser a mesma.

Todas são fáceis de identificar através do excelente catálogo de José A. Saez Bolaño e José M. Blanco Villero,
Las monedas de la Betica romana, vol. I, Conventus Gaditanus, pp. 257-292:

  • V. Salgado nº 1 - Semis da 7ª cunhagem da 2ª metade do séc. II a.C., correspondente ao magistrado L. Marc. (nº 13 catálogo)
  • V. Salgado nº 2/A. do Paço nº1 - Quadrante da 6ª cunhagem da 2ª metade do séc. I a.C. (nº 46 do catálogo).
  • A. do Paço nº 2 - Semis da 2ª cunhagem de finais do séc. I a.C. a princípios do séc. I d.C. (nº 48 do catálogo).
A verdadeira Carteia
Sabe-se há muito (desde, pelo menos o séc. XVI) que Carteia se situava no Cortijo de El Rocadillo, em São Roque (Cádis), então no fundo navegável da Baia de Algeciras. O tema ficou definitivamente assente desde 1888, graças a E. Hübner. (L. Roldán Gómez et alii, Carteia, Junta de Andalucia e CEPSA, 1998).

A c
olonia libertinorum Carteia foi a primeira colónia de direito latino estabelecida fora do território itálico, fundada em 171 a.C. para criar um quadro urbano e cívico aos descendentes de soldados romanos e de mulheres indígenas, de condição escrava. A cidade notabilizou-se graças à narrativa da sua história por Tito Lívio (Lívio, XLIII, 3).
O assentamento romano teve uma origem anterior, fenícia ou cartaginesa, segundo se depreende do topónimo, que tem como raiz o étimo fenício QRT-, significando cidade. Foi um porto importante até meados do séc. I d.C., graças à sua proximidade de África e posição no trânsito do Estreito, tendo sido posteriormente suplantada nessa função por Baelo Claudia (Bolonia, Cádis).
É hoje um sítio arqueológico de grande importância, parcialmente explorado e aberto ao público, associado a um interessante museu monográfico (http://www.ffil.uam.es/carteia/museo/).

Quarteira ?
Apesar dos factos acima descritos serem do conhecimento universal, o bairrismo semi-culto continua ainda a invocar Carteia como origem mítica de Quarteira, ou a vender a ideia como uma "teoria" válida entre muitas outras, forma demagógica de titilar os egos locais.

Não é, porém, clara a origem do nome Quarteira, que surge pela primeira vez em 1282, na forma latina erudita de quartaria (J. Pedro Machado, Dicionário Onomástico-Etimológico da Língua Portuguesa, Livros Horizonte, Lisboa 2003, vol. III, p. 1222,, verbete Quarteira).
O corónimo distribui-se numa região relativamente extensa, com vários designados (Torre, Armação, Praia, Quinta, Morgado) e localiza-se a alguns quilómetros do lugar hoje designado por Sítio dos Quartos.
Poderá tratar-se ou de uma designação relacionada com o sistema fiscal posterior à conquista portuguesa, tema que sai fora do âmbito deste post.
Poderá, porém, tratar-se de um topónimo moçárabe, podendo assim ter-se gerado durante a dominação islâmica ou ter uma raiz romana. Existem várias hipóteses, que são, infelizmente, ou problemáticas ou totalmente conjecturais. Entre elas destacamos:
  • Segundo paralelos conhecido algures, a etimologia relacionaria o topónimo com um marco miliário de quatro milhas romanas, sendo porém impossível determinar um ponto significativo para o início de tal distância (quatro m.p. = 5916 m).
  • Poderia também designar um território com quatro m.p. de raio, com centro em Quarteira Velha, que abrangeria efectivamente o antigo morgado de Quarteira, desde a Ponte do Barão ao Garrão, por Pedra de Água, Cabeço da Câmara e Corgo da Zorra. Esta área poderia corresponder ao território administrativo da mansio (ver adiante), demarcado do município Ossonobense.
  • Poderia, finalmente, designar a quarta mansio fiscal portuária desde o Anas (Baesuris, Balsa, Ossonoba e Quatraria!).
Uma mansio industrial
Não há porém dúvidas sobre a grande importância da ocupação romana da zona Quarteira-Vila Moura na Época Romana.
Constituía então um lugar secundário (vicus) na provável periferia do território de Ossonoba, um dos portos notáveis do Algarve Central, uma mansio do Itinerário Antonino e um complexo industrial de grandes dimensões.
Destaca-se uma luxuosa e enorme domus palatina (sítio arqueológico de Cerro da Vila), um porto interior, uma grande fábrica de tinturaria (baphium), pelo menos um bairro residencial modesto e um ou mais estabelecimentos conserveiros.
Estas descobertas recentes são da autoria da equipa de Félix Teichner (F. Teichner, "Cerro da Vila - aglomeração secundária e centro de produção de tinturaria no sul da Província Lusitânia" in Xelb nº 5 (2005), Actas do 2º Encontro de Arqueologia do Algarve, 17-18 Outubro de 2003, C. M. Silves, Silves 2005, pp. 85-100.).

A imagem seguinte é extraída deste artigo, p. 90, com a devida deferência ao autor e editor, mostrando uma versão parcial do assentamento.



Geografia costeira antiga
A ribeira de Quarteira terminava então num enorme páleo-estuário interior, limitado a Ocidente pela falésia do Outeiro do Casão e a Oriente pelo Cerro da Vila, que formava uma pequena península interior. O fundo do estuário atingia a área da actual quinta de Quarteira e a transgressão marítima ocupava a Oriente as áreas arenosas até Quarteira-Velha.
Uma notícia do Séc. XVII, refere uma séria de ilhas entre Albufeira e Faro, destacando uma cuja ponta se chama Pedras Negras, ao largo (Pedro Texeira, Descripción de las costas y puertos de España, 1634):

Adelante della aze la costa vna plaia en la qual está la villa de Albufeira. Tanbién en esta ensenada ay muncha pesca de atunes, que en toda esta costa los ay en gran número, rematándose esta dicha plaia con vna punta por junto a la qual se entra en el mar vn riachuelo. Y en la orilla de la parte del leuante de el se sigue la costa baxa y con vnas yslas junto a ella que sólo se diuiden de la tierra por vnos angostos canales de agua. Son todas estas yslas que uan seguiendo toda esta costa al leuante de arena. Y la punta de la primera que queda referido se llama Piedras Negras. Vna legua por entre la ysla y la tierra está vna torre que llaman Torre de la Quarteira. Della a otra legua se entra en la barra y puerto de la çiudad de Faro.
(in El Atlas del Rey Planeta, Ed. Felipe Pereda et alii, Nerea, San Sebastián 2002, p. 342, fol. 56r)

Vestígios de estruturas portuárias submersas encontradas ao largo de Quarteira, a 8-10 metros de profundidade (A. do Paço e J. Ferrajota 1964, idem, pp. 78-89), com materiais de construção romanos, também indicam que se iniciava aqui o sistema de ilhas-barreira, a cerca de 700 m da linha de costa actual (Maria C. Simplício e Pedro Barros, "'Quarteira submersa': resultados da campanha de 1998" in al'Ulyã, nº7 (1999/2000), C.M.Loulé, Loulé 2000, pp. 55-76)

Desde então tem prosseguido a erosão da linha costeira, sendo notório o desabamento do cabeço litoral do Forte Novo e o recuo anual da linha da falésia, periodicamente noticiado nos meios de comunicação.
Uma análise geológica e fisiográfica superficial parece indicar que a actual Avenida Sá Carneiro se situa parcialmente sobre um esteiro colmatado e que o porto inicial se estabeleceria no sopé da colina de Quarteira-Velha. A actual mole de betão marginal assenta sobre um cordão dunar cuja época de formação nos é desconhecida.

Reconstituição da costa de Quarteira-VilaMoura na Época Romana
Assinala-sa a evolução moderna da área urbana de Quarteira e a zona explorada do complexo arqueológico do Cerro da Vila

A ocupação romana
Na orla do antigo estuário interior existiam igualmente assentamentos romanos e, entre as ribeiras de Ludo/São Lourenço e de Quarteira, estendiam-se baterias de cetárias associadas a villae marítimas e assentamentos piscatórios, em que se destaca a villa de Loulé Velho.
Nesta última zona sucediam-se esteiros perpendiculares à costa, hoje identificados por páleo-lagoas vestigiais (Loulé Velho, Quinta do Lago e Tejo do Praio).
Topónimos da vizinhança indiciam habitats romanos ou tardo-antigos desaparecidos (Semino), mananciais sacralizados pré-cristãos (Fonte Santa, junto à antiga via), lugares de passagem da antiga via (Passil, Vale de Carros e, talvez, Corgo da Zorra) e a existência de actividade mineira (Ferraria), que muito provavelmente já existiria na época romana.
Deve ainda nota-se que toda a zona era primitivamente coberta por uma densa floresta de pinheiro manso, cujo uso como combustível industrial (mineração, conservas e tinturaria) e material de construção, nomeadamente naval, representava um importante recurso. Já no séc. XIII, Al-Himyari ainda refere o pinhal no litoral de Xantamaria al-Gharb, onde existiam estaleiros navais (Himyari,105).
Explorações recentes na villa de Loulé Velho fundamentam um trabalho de síntese sobre este local (Isabel Luzia, "O sítio arqueológico de 'Loulé Velho'" in al'Ulyã, nº10 (2004), C.M.Loulé, Loulé 2004, pp. 43-131), revelando uma ocupação continuada entre o séc. I a.C. e o séc. VI ou VII d.C., em que se destaca uma basílica páleo-cristã na fase final de ocupação.

O Itinerário XIII de Antonino: Salacia ou Salaria
A sua associação à primeira e única etapa (conhecida) do itinerário Antonino XIII, Ossonoba - Salaria (ou Salacia) não oferece dúvidas. A distância indicada de 16 m.p. corresponde exactamente ao comprimento da estrada Ossonoba a Quarteira por Marchil, Pontal, Ludo, Fonte Santa, Passil e Quarteira.
Salaria (ou Salacia, nome comum em estabelecimentos litorais) poderia ser assim o primitivo nome romano de Quarteira.
A via romana proveniente de Ossonoba prosseguia para Ocidente através da Ponte do Barão, Vale de Carros e Lajeado, na direcção de Guia e Pêra.
Outras estradas ligavam o local a Messines e a Salir-Touriz, os nós viários mais importantes do Algarve Central na sua ligação através da Serra.

Uma praefectura annonaria?
A sua função como mansio do Itinerário Antonino, associada à presença de um estabelecimento industrial de dimensões assinaláveis permite sugerir que a fábrica de tinturaria (e talvez parte das de conservas) fossem estabelecimentos estatais, ou sob controlo estatal, ligados à annona. (A. H. M. Jones, The Decline of the Ancient World, Longman, London 1966, pp. 314-15)
A grandiosa domus do Cerro da Vila não seria assim uma mera villa maritima privada mas a residência oficial da superintendência da estação annonária, o que justificaria o seu luxo, sofisticação e dimensões, muito acima dos recursos naturais da zona.

Segundo Denis van Berchen (
La annona y el Itinerario Antonino (1937), anexos de El Miliario Extravagante, 4, ed. Gonzalo Arias, Ronda 2002), A. H. M. Jones (idem) e outros autores, este sistema fiscal terá tido iniciado por Séptimo Severo (193-211 d.C.) e teve o seu apogeu no Baixo-Império, após as reformas de Diocleciano (284-305 d.C.).
De facto, apenas com a pequena colecção de moedas reunidas por A. do Passo e J. Ferrajota no artigo já referido, não deixa de ser notável a ausência de espécies Alto-Imperiais. Para além das duas moedas de Carteia já referidas, do Período Republicano, são descritas mais 18 moedas, todas do Baixo-Império, desde Maximino I (235-238 d.C.) a Teodósio I (379-395 d.C.).
As villae e casais privados das redondezas formariam uma periferia articulada com o centro annonário, fornecendo sobretudo produtos piscatórios e florestais e, eventualmente, contentores cerâmicos.

De acordo com esta teoria, o lugar teria um estatuto superior ao de uma vulgar mansio não urbana do Itinerário de Antonino (estação de pernoita e posto de colecta e armazenamento fiscal, associado a uma comunidade de contribuintes), sendo possivelmente uma praefectura directamente ligada ao governo provincial e à administração das manufacturas estatais. A domus do Cerro da Vila justifica esta ilação, pois o seu luxo e dimensões colocam o estatuto do seu possessor muito acima de um simples beneficiarium (superintendente de uma mansio, com funções militares).

Sunday, November 06, 2005

PORTUS HANNIBALIS

Uma polémica secular

Portus Hannibalis é identificado no Algarve apenas por Pompónio Mela (De Situs Orbis, III,1):
In Cuneo sunt, Myrtili, Balsa, Ossonoba; in Sacro Lacobriga, et Portus Hannibalis; in Magno, Ebora.

André de Resende (Antiguidades da Lusitânia, 1593) foi o iniciador da polémica sobre a localização de Portus Hannibalis em Alvor, devido à identificação das ruínas de Alvor Velho, que atribuiu aos cartagineses.
O assunto tem sido debatido desde então, sem grande sucesso pois nenhum dado posterior veio clarificar significativamente a questão.
Sintetizamos aqui o estado actual da polémica.

Sagres. Pedro Texeira 1634
Copyright El Atlas del Rey Planeta, Ed. Nerea 2002


1 Sagres: Terçanabal < *dársen'Anibal
Portus Hannibalis pode ter sido apenas o porto de espera de Sagres, segundo o sentido da etimologia de Terçanabal, (*dársen'Anibal)

A travessia do promontorium Sacro poderia obrigar, como sucedeu até aos tempos modernos, a longas esperas num porto do Barlavento, até que os ventos permitissem um contorno do cabo pelo largo, não só evitando o Oeste contrário, antes do cabo, como o Norte logo após a sua travessia.
O uso da baía de Sagres como porto-de-espera na Antiguidade era assim praticamente inevitável, devido às suas condições únicas junto do Cabo de São Vicente. O seu controlo seria de importância estratégica primordial no acesso à rota atlântica, incluindo ao vale do Tejo (em 212 a.C. os almirantes cartagineses Magon Barca e Asdrúbal Giscon invernaram as suas esquadras, respectivamente no Algarve e no Tejo: Políbio, Histórias, X,7,5)

Fontes renascentistas (IRIA, Alberto:
Itinerário do Infante D. Henrique no Algarve, Faro 1960, p. 36,49) indicam a manutenção desta função de porto-de-espera e a criação de infra-estruturas pelo Infante D. Henrique no sítio de Terçanabal, hoje associado à baía de Sagres-Mareta (ou de Belixe, em caso de Levante) junto a Sagres.
A etimologia portuguesa transparente "terçã naval", indicada para este topónimo (devida às grafias alternativas terçanaavall, em 1459, e Terça Naval em 1505) , é anacrónica (contra IRIA idem, p. 49-50) pois ele surge já na Narrativa do cruzado anónimo sobre a conquista de Silves (1189), anterior ao domínio português, com a ortografia carphanabal, que deve ser interpretada como *tarfanabal.
Por seu lado, a evolução *tarafnabal < *tarfanabal, com o significado de cabo (a ponta de Sagres), é inadequada (contra Fernandes Lopes, em IRIA ibidem p. 49) pois sabemos que essa ponta se designava na época islâmica por *taraf al-minar, a partir do seu nome Trasfalmenar, ainda utilizado no Séc. XV. (IRIA ibidem, p. 22-23).

A etimologia mais provável é *dársen'Anibal < *tarfanabal < Terçanabal
Baseia-se na proposta ouvida a Adel Sidarus, aqui apresentada com a grafia dársena, (segundo Federico Corriente. Diccionario de arabismos y voces afines en iberorromance, Madrid 1999: 231, verbete arsenal).
O étimo árabe original seria *Daar'sinnat Hannibal (Informação de Abdallah Khawli) e corresponde a uma notável tradução árabe literal de Portus Hannibalis
Este topónimo indica a presença de um porto militar (arsenal) no local, e pode basear-se em elementos desaparecidos ou ser apenas uma interpretação posterior, contemporânea da época islâmica.

2 Ipses ou Portus Magnus ?

Devemos considerar igualmente a hipótese mais comum de Portus Hannibalis se tratar de um porto de Inverno para as esquadras cartaginesas. Nesse caso teria de ser um dos três portos-de-abrigo do Barlavento: Lagos, Alvor ou o Portimão, na vizinhança do porto-de-espera de Sagres.
Seguindo a ordem geográfica de Mela, de Ocidente para Oriente, o porto localizar-se-ia a Leste de Lacobriga (ver post mais abaixo).

  • Se aceitarmos a hipótese de Lacobriga se localizar em Aljezur, então Portus Hannibalis seria quase certamente em Lagos, por ser o porto-de-abrigo mais próximo de Sagres e por a sua topografia antiga se ajustar modelarmente à tradição naval púnica., com canais de acesso, portos interior e exterior e ilhas atracáveis numa enseada interior.

  • Se, pelo contrário, aceitarmos a identificação tradicional de Lacobriga com Lagos, então a localização de Portus Hannibalis permanece em aberto entre a laguna de Ipses e o futuro Portus Magnus, ambos com condições para manter segura uma esquadra (ver posts respectivos, mais abaixo).

    Neste caso, é porém menos provável que Ipses tenha sido Portus Hannibalis, pois mantém o nome indígena anterior após a derrota cartaginesa, enquanto que Portus Magnus é um topónimo romano, posterior a essa derrota, que pode ter sido criado pelos vencedores para substituir a antiga designação.

    Seguindo esta linha de raciocínio, o facto de
    Mela referir ainda o nome antigo, significa talvez que a mudança toponímica se terá realizado apenas numa data posterior à sua obra (escrita em 43-44 d. C.).

Friday, November 04, 2005

IPSES

Reconstituição da Ria de Alvor na Antiguidade e da forma urbana de Ipses. (Clique para aumentar).


Ipses foi identificado com Alvor em 1987 (Teresa Júdice Gamito, Vila Velha, Alvor" in Informação Arqueológica 9 (1987) , Lisboa 1994, p. 119-120).
O seu nome original seria *Ipsis, (António Marques de Faria, "Onomástica paleo-hispânica: revisão de algumas leituras e interpretações" in Revista Portuguesa de Arqueologia, volume 3, número 1 (2000), , Lisboa 2000, p. 134) romanizado como Ipsa.

Tanto quanto se saiba, Ipses/Ipsa goza do privilégio de ser um dos dois únicos povoados do Algarve (juntamente com Kilibe/Cilpes) referidos na Geografia de Artemidoro de Éfeso, escrita cerca de 100 a.C.
A sua localização e os temas da sua cunhagem monetária (Hércules/Melqart e Vénus Marítima/Astarté) permitem defini-lo como um porto-santuário, escala pertencente à rota de navegação atlântica de Gadir/Gades.
800 anos mais tarde, é ainda o único sítio do Algarve identificado como limite da diocese visigótica de Ossonoba, no documento conhecido como Divisio Wambae.

È notável o seu urbanismo de traça romana, constituído por um povoado hipodâmico, o oppidum indígena e um bairro portuário intermédio, onde se localizaria o templo primitivo, de dedicação marítima.
A ocupação romana inicial (finais séc. II a.C.) corresponderia a uma base militar naval.

Quase nada se sabe de Ipses Alto-Imperial. A forma urbana que chegou até nós poderá ter a sua origem na fase de apogeu urbanístico iniciada por Augusto. Numa zona de sismicidade tão intensa e tendo em conta os paralelos de Ossonoba e Balsa, é provável que se trate de um programa urbanístico posterior a Cláudio, quiçá bastante posterior.
A presença de uma numerosa ocupação romana rural na antiga orla estuarina interior e a posição portuária de Ipses, no termo da via de acesso à Serra de Monchique e ao seu balneário termal sacralizado, revelam uma situação de capitalidade local, reforçada pelo carácter eminentemente urbano do assentamento. A presença e sobrevivência tardia da luxuosa villa da Abicada, então no vértice de uma cunha estuarina a Norte de Alvor, sugere a residência de uma personalidade oficial importante associada ao estatuto de Ipses e não apenas uma mera villa de possessor.
A ausência de Ipses nas listas de Plínio e Ptolomeu pode significar apenas uma omissão ou então a confirmação do seu estatuto dependente, de vicus portuário sob provável administração directa provincial e, portanto, excluído das zonas de administração municipal.

Sobre a Antiguidade Tardia, entre os sécs. V e VIII, também nada se sabe. Podemos igualmente especular que o abandono da zona hipodâmica se poderá ter produzido nesta época, sucedendo-se uma redução do habitat à zona do velho oppidum.
A identificação de Ipsa como limite ocidental da diocese de Ossonoba, no séc. VII, deve implicar a sua existência como paroecia, centralizando um vasto território que incluía o Cabo de São Vicente e Monchique. Ipsa possuiria assim uma basílica páleo-cristã com uma certa importância, no lugar do antigo templo pagão.

Sobre Ipses/Alvor ver
http://www.arqueotavira.com/Estudos/Alvor-2005-Poster-A0R.pdf (PDF v.6, 1.5 MB).

Thursday, November 03, 2005

PORTUS MAGNUS

A atribuição da etimologia Portus Magnus a Portimão é da autoria de David Lopes e o assunto foi convincentemente desenvolvido por José Pedro Machado, no seu Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, Verbete Portimão, p.1201.
A abonação local mais antiga corresponde a uma fonte árabe do séc. XI, em que surge definido como alcaria (aldeia, lugarejo) de Burtimûn.

`umdat aTTabîb fî ma´rifat annabât , obra cujo título se traduz por "O fundamental para o médico no conhecimento das plantas", Rabat, 1990, T. II, p. 656, do botânico do século XI, Abû al-Khayr al-Ichbîlî, que diz: "Vi este tipo [uma planta chamada Qâqillî] na região de Silves numa alcaria chamada Burtimûn". (informação de Abdallah Khawli).

Em 1189, o cruzado anónimo alemão, autor da narrativa da conquista de Silves, refere-se ao castelo de Porcimunt. (o c por t corresponde a um erro comum de copista).

Ed. João da Silva Lopes, 1844, p. 42 (214). A cidade de Silves num itinerário naval do século XII por um cruzado anónimo, Lisboa. Ed. fac-simile, Távola Redonda, Lisboa 1999.

O étimo moçárabe provável terá sido *Portiman, evolução de Portus Magnus.
O topónimo Portus Magnus está registado em diversos lugares do Império Romano, nomeadamente na Mauretania Caesariensis (Bettioua, na Argélia) e na Hispania Terraconensis, na zona de Almeria, onde surge ainda no séc. XII sob a forma árabe Bortmán , segundo Idrîsî, IV,1.
O nome podia referir-se inicialmente ao espaço aquático (como o Portus Magnus de Alexandria) ou então, a um assentamento portuário, passando posteriormente a designar o rio.
De facto o estuário ainda se designava no século XIX como Rio Portimão (sem preposição), distinto do Arade, que terminava na confluência da ribeira de Boina ou na de Odelouca. A própria designação Vila Nova de Portimão revela a existência do topónimo anterior.
Na época romana existiriam pelo menos cinco lugares associáveis a funções portuárias:

  1. Portimões, estação romana de salga de peixe. O sítio de Portimões (ou da Estrumal, ou das Casinhas dos Mouros) ( Maria Luísa Santos, Arqueologia Romana do Algarve, vol. I, Associação de Arqueólogos Portugueses, Lisboa 1971, p. 128) é corónimo derivado de antropónimo familiar português, no plural, forma comum no Algarve (Giões, etc.). O antropónimo ter-se-á formado, por sua vez, a partir do hidrónimo na vizinhança da habitação.

  2. Ferragudo, nome de possível etimologia árabe (em estudo), provável vicus piscatório com ocupação anterior da Idade do Ferro e posteriormente aldeia fortificada no período islâmico.

    "...estão uns aposentos a que chamam Ferragudo, que eram muito principais, e nos edifícios, ainda que estão caídos, se mostra a grandeza deles, porque era cercado de muros, e com casas de sete ou outo moradores, que se metiam umas por outras, feitas com muita curiosidade, e os baixos delas corriam ao longo do rio. os muros estão em muitas partes derribados e as casas caídas; de crer é que o intento foi maior, que o efeito" (Henrique F. Sarrão, História do Reino do Algarve, 1607, p. 156, in Duas descrições do Algarve do Século XVI, (ed. M. Viegas Guerreiro e J. Romero Magalhães), Cadernos da Revista de História Económica e Social (3), Sá da Costa, Lisboa 1983, p .133-182

    Será esta possivelmente a localização da
    qaria de Burtimûn, convertida posteriormente em hisn pois Porcimunt é já referido como castelo na "narrativa" do cruzado anónimo. O castelo poderá ter-se localizado onde mais tarde se edificaria o forte de São João do Arade. No entanto, o topónimo Castelos na parte ocidental da Praia da Rocha poderá ser uma localização alternativa.

  3. A enseada da Mexilhoeirinha (Mexilhoeira da Carregação), o melhor cais natural do Algarve, capaz de dar calado de atracagem aos maiores navios da época.
    No terminal das vias romanas proveniente de Ossonoba e de Messines, seria o Portus Magnus propriamente dito, lugar de embarque da travessia do rio para a margem direita. Manteve esta função até finais do séc. XVIII, quando o bispo Gomes de Avelar fez construir a Calçada da Barca, antepassada da estrada de Portimão pela ponte velha .
    A ponta da Carregação define a extremidade Sul de uma longa e estreita enseada em arco regular. Este local teria, quanto a nós, as condições ideias para um porto interior romano, resguardado das tempestades marítimas em qualquer vento. Na época o rio teria aqui (a sul do Cabeço de Garcias) uma largura cerca de três vezes superior à actual, abrangendo os sapais secos da margem direita, na confluência com a ribeira de Boina.
    Entre a ponta da Carregação e a Quinta do Parchal define-se uma segunda área portuária, cuja parte mais protegida se assoreou, delimitada por armazéns e cais de carregação sobre a margem actual.

  4. O Ilhéu do Rosário, pequeno habitat na margem esquerda da ribeira de Odelouca, na sua confluência com a ribeira de Arade, com ocupação desde o período romano republicano. O valor portuário é diminuto mas ocupa uma posição estratégica no controlo da navegação fluvial, como entreposto comercial, estação da via fluvial ou posto fiscal.
    A notícia de Leite de Vasconcellos sobre a existência na ilha de uma venda de bebidas revela a sobrevivência dessa função ainda em 1917. (De Terra em Terra. Excursões arqueológico-etnográficas, Lisboa 1927: vol. II, p. 257-259).
    A presença na ilha de um oratório com a imagem da Senhora do Rosário (origem do topónimo actual) pode revelar uma localização religiosa anterior, tendo assim também uma função de santuário fluvial.

  5. O sítio de Cilpes (península da Rocha Branca) na ribeira de Arade. Igualmente identificado no papiro de Artemidoro, como Kilibe. Povoado Proto-Histórico fortificado com influência orientalizante, sede dos *Cilibitani (Cibilitani em Plínio, IV, 35). Cunha moeda com a legenda Cilpes. O nome turdetano original seria *Cilipis.
    O sítio corresponderá ao lugar central pré-romano de uma civitas que se manteve durante o Império, cujo nome originou posteriormente Xîlb na Época Islâmica e depois Silves. Desconhece-se o centro urbano romano correspondente à capital desta civitas.

Tuesday, November 01, 2005

Topónimos

Densidade toponímica


A densidade toponímica (nº de nomes de lugar por unidade de superfície) indica a intensidade da ocupação humana do espaço rural e suburbano.
A ocupação humana multiplica os pontos de referência e de apropriação do território, que se manifestam em topónimos distintos.
A densidade toponímica é um bom indicador da densidade da população rural e do peso das explorações agrícolas familiares no espaço agrário tradicional.
A toponímia tende a acumular-se e a persistir, sobretudo nos registos cartográficos e cadastrais, sobrevivendo às vicissitudes demográficas.
A densidade toponímica reflecte assim uma fase da história territorial mais ou menos recente (cerca de 1 a 2 séculos).

O mapa mostra a localização de 167,423 topónimos do Repertório Toponímico da Carta Militar de Portugal (1966)
Clique para aumentar

Monday, October 31, 2005

LACOBRIGA

 A new updated version in English, here


Povoado de localização problemática


Reconstituição da laguna de Lagos na Antiguidade (clique para aumentar)
Lacobriga surge nas fontes clássicas em Pompónio Mela (In Sito Orbis: Lacobriga), Ptolomeu (Geografia: Laccobriga, com coordenadas erradas) e Plutarco (Sertório: Lacobrigenses, sem localização).
O topónimo e a referência de Ptolomeu indicam tratar-se de povoado de origem celta, localizando-se portanto no Ocidente. Não se confunde com Alvor/Ipses ou Rocha Branca/Kilibe, que são povoados turdetano, ficando assim para ocidente destes.
Ficaria igualmente a ocidente de Portus Hannibalis, segundo Mela, na zona do Barlavento algarvio (Sacro)
No entanto apenas a tradição, iniciada por André de Resende identifica Lacobriga com Lagos, não havendo quaisquer elementos epigráficos ou numismáticos conhecidos que refiram ou localizem a cidade romana.
O nome Lacobriga configura um povoado indígena num assentamento elevado, na margem ou numa ilha de um lago. No Barlavento existem apenas duas localizações mais prováveis que cumprem esses requisitos: Aljezur e Lagos.

Reconstituição da Ria da Aljezur na Antiguidade (clique para aumentar)
Aljezur
Pequena península rochosa que na Antiguidade se rodeava de água por três lados, situação que ainda existia durante a época islâmica, originando o seu topónimo árabe الجزر (ilhas ou penínsulas, segundo A. Khawli). O seu nome anterior é desconhecido.
O lugar teve ocupação na Idade do Ferro e na época romana. Há notícia de um cais de atracagem na parte baixa do povoado, revelando o seu carácter portuário. O vale da ribeira de Cerca seria então um braço de mar navegável.
O aspecto corresponde a um oppidum, sem dúvida céltico devido à localização nesta parte do Sacro. A topografia terá tornado o lugar menos próprio para uma ocupação romana de tipo urbano.

Lagos
A zona de Lagos merece um estudo monográfico de geografia histórica, que está por fazer. Limitamo-nos aqui a esboçar alguns pontos que nos parecem relevantes a priori.
A páleo-fisiografia costeira mostra que a zona Norte da actual cidade de Lagos é a única que possuiu um verdadeiro lago, que se manteve mais ou menos alagado até aos tempos portugueses (daí os topónimos antigos Lago e Lagoa e modernos de Paúl e Sargaçal, para além do próprio nome Lagos).
A grande extensão do antigo lago e do seu longo canal de acesso, permite definir geograficamente diversos lugares de assentamento potencial, para além destas ilhas:

No canal:
Em ambas as margens do canal de Lagos, sobretudo na área da cidade actual, entre as antigas ribeiras do Touro e das Naus, têm aparecido vestígios de estabelecimentos de conservas de peixes e material anfórico em grandes quantidades, indicando tratar-se de um provável vicus industrial.
Desconhece-se o estado de sedimentação da margem esquerda na Antiguidade, havendo a hipótese da existência de um porto ou praia de varamento a Sul do Monte Molião.
Molião. Tem sido apontado como o lugar do assentamento céltico ou romano de Lacobriga. De facto, a sua posição no limite da via terrestre oriental e a cavalo sobre o cotovelo do canal, num promontório bem visível e na margem oposta do porto, indicia tratar-se antes de um lugar sagrado, funerário e/ou defensivo.
Descobertas recentes na fachada SO de Molião mostraram a existência de um fosso na base do monte, colmatado com grandes quantidades de cerâmicas romanas republicanas (séc. II a.C.), revelando a presença de populações itálicas pelos seus hábitos de consumo. Terá sido certamente um destacamento militar, revelando a função do local como um castellum ou pequena castra romana, até ao séc. I a.C.
Porto exterior (São João-Horta do Trigo). Lugar onde têm sido encontrados vestígios romanos. Localiza-se no sítio mais provável de destino do aqueduto que estaria ligado à barragem romana da Fonte Coberta, sugerindo a presença de uma fábrica de conservas e, talvez, de uns balneários.

No lago:
Porto interior (Paúl-Portelas). Encontraram-se nesta zona vestígios romanos importantes, reconhecidos como tais desde há séculos, entretanto dispersos ou destruídos pelo que é impossível localizar a sua origem. A tradição da localização de Lacobriga provém de narrativas fantasiosas baseadas nesses achados, desenvolvidas por André de Resende, Frei Vicente Salgado e Silva Lopes.
Península de Garrôcho-Bemparece. Posição estratégica entre o canal marítimo e o lago interior, entre os portos interior e exterior referidos. Possui uma geografia muito semelhante à páleo-península de Tavira, definindo o lugar como modelo de uma possível ocupação fenícia.
Ilhas. Existem indícios topográficos de terem existido nesse lago pelo menos duas ilhas: Casteleja e Paúl, em que pelos menos a primeira apresenta vestígios romanos, para além do seu topónimo de habitat fortificado.

Nos montes próximos:
Alto da Cerca (Cordeira). É o ponto mais dominante a Poente do lago interior, com uma fisiografia e um topónimo que sugerem a hipótese de localização de um oppidum, de consideráveis dimensões.

A zona de Lagos apresenta uma densa ocupação rural romana, disposta ao longo da antiga orla estuarina mas também nas encostas do Barrocal. Esta ocupação manifesta-se sobretudo através de materiais de construção e de sepulturas. Alguns desses locais corresponderão a villae. Existem também extensos vestígios topográficos de uma grande centuriação rural na área de Espiche, menos bem conservada que a de Balsa, mas melhor que a de Ossonoba.
A Divisio Wambae
O documento designado como Divisio Wambae, que define as delimitações das dioceses visigóticas, refere-se à diocese de Ossonoba nos seguintes termos:
OXONOBA TENEAT DE AMBIA USQUE SALLAM, DE IPSA USQUE TURREM
Sendo uma fonte já muito tardia e de inferior qualidade devido à dificuldade em identificar grande parte dos topónimos, sujeita provavelmente a manipulações nos Sécs. XI ou XII, ela tem por base uma descrição anterior verosímil, datável do Séc. VII, representando assim uma fonte indispensável sobre a toponímia Tardo-Antiga.
A definição de IPSA, nesta época, como território ocidental limítrofe da diocese de Ossonoba significa que Ipses (Alvor) centralizava então todo o Barlavento, desde o Arade ao Cabo de São Vicente e, certamente, desde o mar aos cumes de Monchique. Uma das ilações a retirar é a omissão de Lacobriga.
Lacobriga terá provavelmente desaparecido como cidade, algures a partir do Séc. III ou IV. A ignorância sobre este povoado é total, incluindo a sua localização precisa. Desconhecem-se também as causas do seu desaparecimento, podendo apenas especular-se sobre um eventual paralelismo com Balsa: perda de privilégios marítimos da ordo a partir dos Severos, colmatação da laguna interior, fazendo desaparecer o porto primitivo e graves destruições produzidas por sismos e eventuais maremotos. A ocupação tardo-romana sofreria assim uma profunda alteração, no sentido da desurbanização e eventual abandono dos núcleos Alto-Imperiais, deslocação dos assentamentos rurais no sentido em se ajustarem às novas condições portuárias e estuarinas e, posteriormente, às novas necessidades defensivas.


BALTUM

Uma possível má leitura de uma moeda balsense


"Baltum" surge pela primeira e única vez em Silva Lopes (Corografia ou Memória Económica, Estatística e Topográfica do Reino do Algarve, Lisboa 1841), como primitivo nome romano de Albufeira. Porém, e ao contrário do que lhe é habitual, este autor não indica nem a fonte nem uma justificação.
É provável que Silva Lopes tenha conhecido o termo por um seu informador de Albufeira, cuja identidade seria talvez possível indagar, no sentido de se tentar aprofundar o assunto.
Trata-se de um topónimo desconhecido nos corpora relativos ao Algarve, à Península Ibérica ou ao Império Romano.
Não existe nas fontes latinas ou medievais, na toponímia fóssil, na epigrafia ou na numismática.
A identificação de "Baltum" com Albufeira seria também uma situação anómala, pois não há conhecimento de vestígios romanos com carácter urbano na área da povoação, nem de materiais tardo-republicanos no contexto de uma ocupação indígena posterior ao séc. III a.C., tal como sucede nos restantes povoados proto-históricos do Algarve que cunharam moeda sob domínio romano (Ipses/Alvor, Cilpes/Rocha Branca, Ossonoba/Faro, Balsa/Cerro do Cavaco e Baesuris/Castro Marim).
Na realidade, nada se sabe da ocupação pré-islâmica da antiga península, correspondente ao actual centro histórico. A configuração natural, definindo um pequeno oppidum naturalmente fortificado na orla marítima, com um porto interior no divertículo estuarino hoje desaparecido, sugere no entanto um lugar com uma possível ocupação Proto-Histórica.
O facto de "Baltum" não ser referido por André de Resende (1597) nem por Sarrão (1607) nem por Vicente Salgado (1786) significa também tratar-se de um termo desconhecido pelo menos até finais do séc. XVIII, não pertencendo portanto à tradição historiográfica anterior
Os autores posteriores (Bonnet, Pinho Leal, etc.) limitam-se a copiar Silva Lopes, sem nada mais acrescentar, não podendo servir como fontes comprovativas ou independentes.
Poder-se-ia assim considerar "Baltum" um outro exemplo de invenção mais ou menos fraudulenta, produzida para nobilitar origens locais desconhecidas.
No entanto, a seriedade que Silva Lopes revela em toda a sua obra corográfica leva-nos antes pensar tratar-se, muito provavelmente, do resultado de uma leitura deficiente de um numisma antigo, encontrado algures na zona, nomeadamente de Balsa:
  • São conhecidos exemplares da cunhagem de Balsa (meados séc. I a.C.) em que o canto inferior direito é pouco legível. O "S" só apresenta o ramo superior (ficando semelhante a um "T") e o "A" praticamente desaparece.
  • É assim possível que o informador anónimo tenha lido BALT e que, com os seus conhecimentos latinos, tenha verificado tratar-se de uma palavra incompleta. Teria assim resolvido acrescentar o sufixo -UM, típico das terminações toponímicas romanizadas.
  • Sabe-se hoje da difusão regional das moedas balsenses, que têm aparecido em Faro e em Lagos (Molião), pelo que não seria extraordinária a sua ocorrência em Albufeira.
Note-se que esta hipotética leitura terá ocorrido antes de 1840, e portanto antes das moedas de Balsa serem conhecidas, o que só viria a suceder após 1866. Nesse ano, Estácio da Veiga identifica Balsa no extenso campo de ruínas romanas existente perto d Luz de Tavira e descreve algumas das moedas aí encontradas. Até essa data pensava-se que Balsa se localizaria sob a própria cidade de Tavira.





Exemplo de moeda balsense com legenda incompleta
Um exemplar semelhante pode ter originado a leitura BALT
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